Tempos líquidos, artigo de Anoushe Duarte Silveira.
Na semana passada, fui assistir ao documentário polonês Jardins Lawnswood, do festival É tudo verdade, em Brasília. No filme, após a morte de sua esposa, o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, um dos mais consistentes críticos ao modo de vida pós moderno, traça um panorama de sua vida e obra e discorre sobre a sociedade de consumo, a ética e sobre momentos cruciais de sua vida, como o abandono da Polônia em 1968, após ter artigos e livros censurados pelo regime comunista.
O documentário é fantástico, visualmente falando e principalmente na profundidade dos diálogos. Fiquei profundamente tocada quando ele, um senhor de quase 90 anos, falou sobre sua percepção de que vivemos em um tempo no qual as relações são mais fluidas e as pessoas não se comprometem tanto quanto outrora. É o que ele chama de modernidade líquida. Tão intrigada que fui buscar mais informação a seu respeito.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, outubro de 2003, ele fala sobre o assunto abordado no documentário.¨Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da liquidez para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades autoevidentes. É verdade que a vida moderna foi desde o início desenraizadora e derretia os sólidos e profanava os sagrados, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso se fazia para ser novamente reenraizado, agora as coisas todas – empregos, relacionamentos, know-hows etc – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis.¨
O que o sociólogo quer é tentar compreender quais as consequências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Segundo ele, virtualmente todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.
Hoje o que vivemos é isso, em todos os setores de nossa condição humana. Os empregos não são duradouros, a rapidez do mercado exige mil e uma especializações que faz com que a gente se perca e se sinta estagnado com pouco tempo de trabalho em um mesmo lugar. Se uma pessoa está há 20 anos em um emprego é tida como acomodada. Não importa o que ela esteja desenvolvendo por lá. Zygmunt cita, na mesma entrevista, que na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz nas fábricas da Renault ou Ford iria com toda probabilidade ter ali uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45 anos. Hoje mal sabemos o que poderá nos acontecer em um trabalho no ano seguinte.
Infelizmente as relações afetivas também são assim, voláteis. Na nossa geração é mais comum encontrar pais separados que casais lutando para manter a família. No primeiro empecilho é mais fácil desistir a tentar resolver as questões, afinal o mundo apresenta milhões de outras opções aparentemente mais fáceis. Sobre o assunto, o sociólogo, que teve um casamento duradouro, apresenta a teoria do amor líquido. Ele explora o impacto dessa situação nas relações humans, ¨quando o indivíduo se vê diante de um dilema terrível: de um lado ele precisa dos outros como do ar que respira, mas, ao mesmo tempo, ele tem medo de desenvolver relacionamentos mais profundos, que o imobilizem num mundo em permante movimento.¨
Viver em mundo em permanente movimento às vezes te paraliza. E percebo que é essa a causa da maioria das angústias e depressão. O tempo tem de ser preenchido, se você deseja parar é fraco. E daí falta tempo para viver em comunidade, perceber o outro e a si mesmo, tornar-se melhor e o mundo vai ficando cada vez mais individualista – as pessoas tornam-se obsecadas pelo corpo ¨ideal¨, endividam-se por luxos desnecessários, alimentam-se de incertezas.
O motivo da pressa na vida ¨agorista¨, confome o sociólogo, é em parte o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir. Por isso, acho que tempo é hoje um dos artigos mais preciosos e caros a serem adquiridos. E agregado a ele vem uma enorme esperança de conseguirmos aprender a viver a longo prazo, a solidificar nossas relações e a estar mais preparados às mudanças que a vida nos apresenta, porque as relações fluidas se esvaem na primeira dificuldade. Afinal, ¨a árdua tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos¨. (Zygmunt Bauman)
Anoushe Duarte Silveira é brasiliense, jornalista e bacharel em direito, pós graduada em documentário – com especialização em roteiros. Possui textos publicados em jornais e revistas e nos blogs http://www.amigas-da-leitura.blogspot.com/ e http://www.recantodasletras.com.br. Possui livros publicados em coautoria, selecionados em concursos literários.