Tudo em nada, artigo de Anoushe Duarte Silveira.
Outro dia desses alguém postou um clipe de Chico Buarque na internet em que ele canta e conta a história da música que compôs em parceria com Guinga Você, você (canção edipiana), do CD lançado em 98. Ele diz que fez a letra inspirado na relação de seu neto com sua filha. “Ele só falava você, você, nunca vi uma criança tão colada na mãe como meu neto Chiquinho”, explicou.
A letra é um poema, um primoroso e inspirado olhar sobre a relação entre mãe e filho. “Que roupa você veste, que anéis?/Por quem você se troca?/Que bicho feroz são seus cabelos/Que à noite você solta?/De que é que você brinca?/Que horas você volta?…” Fiquei logo imaginando o que se passa na cabeça da criança quando a mãe some do seu campo de visão: para onde ela vai? Com quem ela brinca?
Por vezes Chico Buarque cantou o universo da criança, do faz-de-conta, como na canção João e Maria: “Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês/A noiva do cowboy/Era você além das outras três…” Ou como na música Ciranda da Bailarina, dele, em parceria com Edu Lobo: “Procurando bem/Todo mundo tem pereba/Marca de bexiga ou vacina/E tem piriri, tem lombriga, tem ameba/Só a bailarina que não tem…” E essa é uma bela combinação, porque o ser lúdico do poeta se aproxima muito ao da criança. Só mesmo crianças e poetas conseguem se indagar sobre “que bicho ferozes são seus cabelos, que à noite você solta”, ou confessar que “todo mundo faz pecado, logo assim que a missa termina”, com tamanha naturalidade.
Só crianças e poetas tratam de temas árduos com leveza. Falam do medo, da insegurança, da tristeza com o coração aberto e com poesia. Afinal, a poesia imortaliza também o que há de ruim no mundo, mas de uma maneira que nos incita a pensar. Como disse Charles Chaplin, “a beleza existe em tudo tanto no bem como no mal. Mas somente os artistas e poetas sabem encontrá-la”. Eu acrescentaria também as crianças, elas naturalmente sabem como enxergar beleza onde a maioria não encontra.
Poetas são crianças grandes e crianças têm a alma de poetas? É…Acho que é por aí… Acho que é por isso também que ambos têm um canal aberto entre si, falam uma linguagem única, têm uma maneira similar de olhar. Na vida, é importante encontrar equilíbrio nos atos, ter os pés no chão para o que for preciso, mas às vezes é desnecessário e triste enxergar só o lado sombrio das coisas. Os poetas e as crianças têm essa capacidade de captar o melhor no pior, de acreditar que tudo pode mudar e sabiamente desviar o curso do pensamento destrutivo.
Crianças e poetas sabem brincar com as palavras e com a vida, quando necessário, e conseguem sonhar colorido. Essa é a sua natureza, simples assim. Mas quem já cresceu e se esqueceu da poesia, às vezes, precisa recorrer aos seus ensinamentos para tocar a vida, porque há momentos em que é imperioso forçar-se a ser um pouco criança ou poeta para conseguir continuar. Momentos em que de nada vale o seu conhecimento, o seu dinheiro, o seu cargo, momentos em que a única alternativa é realmente buscar, como as crianças e os poetas, o que há de bom no que não se pode mudar.
“As crianças acham tudo em nada, os homens não acham nada em tudo. “
( Giacomo Leopardi, poeta italiano )
Anoushe Duarte Silveira é brasiliense, jornalista e bacharel em direito, pós graduada em documentário – com especialização em roteiros. Possui textos publicados em jornais e revistas e nos blogs http://www.amigas-da-leitura.blogspot.com/ e http://www.recantodasletras.com.br. Possui livros publicados em co-autoria, selecionados em concursos literários.